sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

 

LUÍS DOURDIL E OS CAMINHOS DO (NEO)REALISMO

David Santos




UMA OBRA

David Santos Historiador de arte e curador de arte moderna e contemporânea.


     Ler artigo completo aqui --- https://davidsantosarchive.com/luis-dourdil-e-os-caminhos-do-neorealismo/


Pode um artista ser considerado neorrealista a partir de uma só obra? Não, seguramente. Mas poderá uma obra de um artista não-alinhado com o movimento ser classificada de neorrealista? Sim, pelo menos em parte. Apesar da aparente evidência do questionário e das suas lacónicas respostas, e mesmo sabendo que nada deve ser fixado ou descrito neste contraste aparentemente definitivo, verificamos que tem sido difícil à disciplina da história da arte assumir a leitura individual das obras no quadro deste exercício comparativo. Isto é, tendemos a raramente interpretar uma obra para lá do seu contexto e do percurso estético do seu autor, como se a identificação de uma assinatura inviabilizasse a leitura autónoma do seu aparato estético-formal, da sua vida própria. A dependência preconceituosa da filiação estética de uma determinada obra a uma assinatura autoral é ainda mais notória quando apenas perante a incapacidade de identificarmos uma autoria estável e segura, ou seja, quando não sabemos o nome do artista que a realizou, somos finalmente levados pela liberdade de interpretar o que, por si mesma, essa obra nos revela em termos puramente estéticos e artísticos, arriscando assim muito mais no que diz respeito às suas insuspeitas ligações, ausentes que estamos do cosmos inspirador do seu desconhecido autor.


Mergulhando diretamente na questão de fundo, poderíamos reduzir este texto à tentativa de responder a uma só pergunta: de que modo uma obra, em regime exclusivo, pode aproximar o percurso de um artista a um movimento cultural ao qual foi sempre exógeno e, em muitos aspetos, distante?


“Nunca fui um paisagista. Parti sempre da forma real, mas só me interessei de facto pela figura humana. Parece que apenas nela encontro a beleza e a tragédia ou as partes articuláveis de uma nova ordem, um dinamismo interno – a pintura antes de tudo.”Luís Dourdil, in catálogo da exposição Luís Dourdil – exposição de pintura e desenho, Lisboa, Palácio Galveias – CML, 2001 Esclarecida deste modo pelo próprio Luís Dourdil a natureza do seu envolvimento com a prática artística e pictórica, podemos desde já constatar que quem assim fala não é nem poderia ser um neorrealista, mesmo se não deixou de partilhar com a sua época e os movimentos culturais que a definiram uma visão humanista da expressão artística. Posto isto, e depois da separação de águas contida neste preâmbulo, iniciemos a observação concreta de uma obra rara no percurso de Dourdil e da própria arte portuguesa que, de um modo quase perentório e imediato, nos incita à classificação de neorrealista. O que nela se observa em termos temáticos (ações de trabalho, em especial a alimentação das caldeiras a carvão, na Central Tejo, então sob alçada da empresa “Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade”), mas mais ainda o modo como são manifestados os sinais desse conteúdo, aproximam decisivamente a obra “Homens do Fogo” – uma pintura óleo sobre tela, de médio formato, 114×153 cm, assinada e datada de 1942 – do universo do “realismo social” que entre os anos 30 e 40 se afirmava em vários pontos da Europa e do continente americano, ainda que em Portugal tenha vindo a desenvolver o seu espaço de visibilidade e comentário apenas no imediato pós segunda guerra mundial, ou seja, a partir de meados de 1945.


É verdade que alguns críticos de arte assumiram e identificaram há já algumas décadas a filiação estética aqui ensaiada. Por exemplo, logo em 1984, Rocha de Sousa afirmava:


Esta obra de Dourdil propõe um discurso neo-realista, com algumas acentuações recolhidas indirectamente do expressionismo e da vontade social que os dois «movimentos», deste ou daquele modo, interpretam. O esforço e a grandeza do trabalho humano passam pela tela com um tom ideológico apologético: os gestos quotidianos dos trabalhadores cedem a uma encenação operática, aliás desenvolvida sobre uma «cortina cénica» de escala significativamente grandiosa. A fábrica não é o lugar onde se produz, é a catedral do esforço colectivo; e tudo o que se movimenta (re)toma a eterna pose da monumentalidade, do sacrifício sublimado em reflexo super humano.Rocha de Sousa, Dourdil, Lisboa, IN-CM, 1984, pp. 29 e 30.

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 Estudo e artigo David Santos 

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