quinta-feira, 17 de março de 2016

Tributo a Luis Dourdil - PrOvOcação





Quando o homem saiu de casa,pensou apenas em que lhe saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda.Não eram muitas as vezes em que podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício.Sem o aguilhão do relógio.Sem moer-se com atrasos.Tinha um emprego que o enjaulava das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que ronceiras eram as tardes!),com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete na frente,a mão contrafeita.a sujar papéis de olhos fechados, a cidade espalmada nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele,que a via tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão pouco mais tempo lhe restava do que,num rufo,tomava a bica no café mais próximo.Depois vinha o jornal lido no autocarro,o jantar e o serão que não chegava a nada para o muito que lhe daria gosto fazer.A mulher nem se atrevia a propor um passeio.Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e tricotava enquanto ele,numa nuvem de cigarros,refundia, noite após noite,o que começara na véspera. Havia os domingos, é certo,mas os domingos eram a ressaca da semana:a indolência merecida ou desenganada,o pequeno almoço na cama,a música do rádio,a matinée no cinema do bairro e,sobretudo,o fastio das ruas em que a vida se adiava.A verdade é que,quando chegava o Verão,sentia as juntas perras,a moleza pegada ao corpo e,debalde,fugia ao langoroso convite dos cadeirões das esplanadas.Valia-lhe ser um peso pluma.Mas agora que,por um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença,interronpera o emprego para aceitar aquele trabalho,não desperdiçaria o ensejo de um pouco de marcha diária,já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros distavam.Marchar, numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos músculos) também sabia a libertação.O homem, pois,saiu de casa a foi ao atravessar a rua que se lembrou dos ovos.Sem os ovos, nada feito. Estudara as coisas com rigurosa minúcia.Desavesado a certos lugares,e como nunca acompanhara a mulher nas compras,voltou atráz e gritou para cima, pelos roufenhos do intercumunicador:
- Maria,onde poderei encontrar ovos?
A mulher,com risos na voz,elucidou-o:
-Fica-te em caminho.Na Charcutaria"Pôr do Sol".
A Charcutaria "Pôr do SOL".Essa, conhecia ele.Ali a dois passos.Tomava lá café,nada mau,e só um herege podia ficar indiferente à exuberância da apetitosa montra,desde chourições aos papos de anjo de Amarante.Ovos,numa luxaria daquelas?A ideia intimidava-o.Entrou, porém armando-se com o alibi de precisar de cigarros,para o caso de se sentir em apuros.Viu-se,por momentos, aturdido com o labirinto de escaparates,mas logo um senhor mavioso,que o observara de longe,destes para quem"o cliente tem sempre razão",veio desembaraça-lo de hesitações.
-Tem a bondade.Vossa Excelência que deseja?
Adiou a resposta com um distraido ou ainda perturbado:
-Boa tarde.
-Boa tarde a Vossa Excelência. Deseja então...
-Ovos.
-Concerteza.Tem por onde escolher.
-Queria dos melhores.
O logista, que parecia passado a ferro de cima a baixo,assentiu numa reverência e,guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros,apontou com a mão esmerada:
-Aqui os tem Vosssa Excelência.
O homem pegou num,dos ovos,rodou-o vagarosamente entre os dedos, avaliou-lhe o peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz,o logista interrompeu-o,já numa ênfase um tudo- nada agastada:
-São de primeira qualidade.Com carimbo.Vêm directamente de Albarraque,do produtor.Ovos saloios-e diluiu o olhar impaciente pelo que se passava em redor.
O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente.Pois, lá estava o carimbo.Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia,poderia parecer outra coisa,mas eram mesmo letras,números-um carimbo.Ficava a saber que por aí,se conheciam os ovos de confiança.
-Bem,já vejo que são bons.E suponho que frescos.
-Sem dúvida.
O logista aguardou uma ordem,ou seja.que o freguês mandasse embalar a quantidade desejada,e,de raspão,atentou em que ele nada trazia consigo,nem um saquinho disfarçado,que servisse para transportar os ovos.Mais que ia dizer-lhe para mandar a encomenda a casa.
-Quantas dúzias?
-Quero dois.
-Disse duas?
-Dois.Dois ovos.
-Vossa Excelência manda.
A imperturbabilidade do logista era um modelo de controle profissional das emoções.De calo no ofício.E também de natural fidalguia,perfeitamente compatível com uma actividade que alguns tinham por servil.Um senhor,enfim.Chamou a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de uma compra choruda.
O homem esteve a trabalhar toda a tarde...
No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se.
O senhor de falas corteses vio-o do balcão,antecipou-se a um marçano,talvez para que não houvesse perda de tempo e inquiriu:
-Hoje,Vossa Excelência deseja...
-Os ovos.Dois.Com carimbo.
Enquanto os escolhia no tabuleiro,o logista repetiu:
-Dois.Com carimbo.Ei-los.Mais nada?
-Mais nada.
O outro franziu a testa ainda lisa.Só a testa.Mas, ao convidar o freguês a acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos,via-se que lhe era dificil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que alguem pusesse os pés na mais ordinária das lojas.
-Temos um esplêndido queijo de Azeitão.Talvez Vossa Excelência...Mas se prefere da Serra...
_Não quero queijo.
-Ou fiambre.Não encontra que se compare.
-Apenas os ovos.
-Vossa Excelência manda.
À despedida,foi com um tempero de discreta ironia que o senhor afável perguntou;
-Vossa Excelência ficou satisfeito com os ovos de ontem?
-Eram perfeitos.
-Ainda bem.Nunca tivémos uma reclamação.
E o mesmo diálogo com a ocasional variante de meias palavras de embuçada intenção,nos dias que se seguiram.Mas,à quarta vez,depois de o logista o seduzir em vão,com atuns,salpicões,alheiras de Mirandela,intrigado com a história dos ovos... bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos?(e o almoço,com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou uma talhada de queijo!...Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos.
-Boa tarde.
-Boas tardes a Vossa Excelência.
-Dois ovos como os de ontem.
-Ou como os de anteontem...
Sorriam ambos.A revalar para uma intimidade constrangida.
E estavam naquilo.à mesma hora.E,por ser à mesma hora,o logista já o esperava à porta.
Os dois ovinhos do costume,não é verdade?
-Dois.
-A que horas fecha a charcutaria?
-Às dez, caro senhor.
-Então passarei a vir a roda das nove.
O logista passou a mão branda pelos cabelos grissalhos,que a brilhantina escurecia e domesticava.Encorajava-se a um reparo.
Vossa Excelência desculpará a inpertinência:mas porque não leva de cada vez uma duzia de ovos,uma duzia ou outra quantidade qualquer,evitando o incómodo de...
-Prefiro assim.
Vossa Excelência manda.
Os gestos do logista,porém,a custo dissimulavam o nervosismo,para não dizer a irritação.Aguardava o cliente à hora prevista...
-Vossa Excelência tem frigorifico?
-Tenho,mas porque me pergunta?
-È que se permite uma sugestão,poderia abastecer-se com uma quantidade razoável de ovos,visto que, no frigorifico,consevam-se muitos dias.
-Bem sei.Mas quero-os bem frescos.Dois de cada vez.
-Vossa Excelência é casado?Perdoe o atrevimento.
-Atrevimento?De modo nenhum!Sou casado,sou.Há uns bons anos.
-E janta, portanto, em casa.
-Quase sempre.
-Ah.
E não ousou ir mais longe.Em cada dia ,que entre ambos se insinuava uma convivência de ambiguidades,o logista avançava em passo miúdo na tentativa de decifrar o mistério...
-Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta  muito de ovos.
-Nem por isso.
Era demais.Aquilo excedia o que a curisidade e a compostura de um homem poderiam suportar.Sentia-se humilhado.Sentia-se humilhado desde o primeiro dia,para que negá-lo?Embrulhou os ovos à má cara,despediu o freguês 
sem a saudação habitual.Porém num repente,foi sobre ele antes que passasse a porta,disse:
-Então os ovos são para alguém da familia...
-Não são para mim.
O logista mais não pôde que abrir a boca...
-Na vez seguinte,o logista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos...
-Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos?É que, para mim são um pitéu.Omelete com salsa...
-Pois eu nem com salsa nem sem ela.
-Ah.
No dia seguinte o logista aguardava-o junto ao balcão acompanhado de uma senhora um rapazola de uns catorze anos...,o grupo que paracia posar para um retrato,fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva.Quanto ao logista entre o acusador e o triunfante:"Eu não vos dizia?É este."Aproximou-se de voz melada e irónica:
-Os dois ovinhos do costume,claro está.
-Aqui tem Vossa Excelência.Bom proveito.
No dia seguinte...
-Perdoe Vossa Excelência:gostaria de confessar uma curiosidade.
-Estou a ouvi-lo
-Bom o caso é este:os ovos,os dois ovos diários. não são para o senhor comer,não são para ninguém comer,pois foi o senhor a dizê-lo;então para que servem?
-Muito simples: para pintar.
O logista recuou,varado pela zombaria...,apontou o dedo trémulo...
-Diz Vossa Excelência que são para pintar.Tem graça.Carradas de graça.Para pintar de amarelo, bem entendido.
-De azul.Ou de violeta,vermelho,negro.-E após ter sublinhado uma pausa,falando espaçadamente e com uma deslavada
inocência:-Mas às vezes também de amarelo,de facto.
Olhando à roda,não fosse alguém reparar no diálogo,o logista retorquiu,sem já moderar o sarcasmo:
De azul , de preto, de violeta.Pintando!
-Com ovos
-O senhor, o senhor!-Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas reações.Estava preste a esquecer,pela primeira vez na vida,que um cliente é um cliente.Mesmo sendo tonto ou lunático.Ou provocador.-Mas pintar aonde?
-Numa parede.No fundo da Alameda.Naquelas obras ao lado do Cinema.
-Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume.è nessas obras.
-Mas isso é um café.
Vai ser Grande.O maior de Lisboa.
-A pintar.
-Com ovos,sim.O senhor pode ir lá ver.
-E vou .Quando?
-Quando quizer.Agora mesmo.
O logista ainda incrédulo disse e poderei ir depois de fechar a charcutaria?
-Claro que pode agora já sabe o sitio.
-Então lá estarei.
O homem divertido,foi saboreando a conversa ao longo da rua.Chegou à Alameda sem dar por isso.Começou a preparar a emulsão no almofariz.Aquilo servido numa travessa passaria por maionese.De um lado .a gema de ovo misturada com o óleo de linhaça;do outro o friso de latas com os pigmentos.Como estes eram uma poeira seca,aderiam ao pincel molhado na emulsão.Nada de colas.Estudara a técnica com todo o vagar.Lera alfarrábios,fizera experiências.A gema de ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas.Os antigos não eram tolos.Para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhes a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo.Pintura co séculos de confirmação,resistindo às maiores usuras.Tinha de resultar.Mas quanto fizera sofrer o pobre logista!Exagerara.Sem premeditação,é certo empurrado pelas circunstâncias,pelos espantos,pelos tais laconismos.No entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotenia daquele viver.Batiam à porta, devia ser ele.Disse para o ajudante:
-Vai abrir  que certamentede é o senhor dos ovos.
-Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras...,sentiu-se engolido por um tunel de surpresas:andaimes,o esgazeamento
de luzes crua.Não viu logo o seu cliente,porque este sumia-se no poleiro de cavaletes.Mas de lá lhe chegou uma vóz familiar:
-Trepe a essa mesa é mais fácil.
Levantou a cabeça para o alto,na direcção das lâmpadas que tinham o feitio de olhos de rã.Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia,uma labareda de cores,a incendiar os esboços de carvão,representando pessoas com o ar extasiado de quem aguarda um cometa no céu.Ei-los,os vermelhos,os azuis,,os amarelos.Aceitou a mão que o ajudava.O cliente vestia um fato de macaco e,na face encovada,ondeava a magia das sombras.
-Repare-dizia-lhe o pintor,numa inflexão paciente e bem humorada-,repare nesse almofariz.E nas cascas dos ovos.É assim que se fáz a mistura.Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.
O visitante permanece silencioso.Esforça-se por recuperar a sua personalidade de logista...
-Razão tinhao Vossa Excelência.Dois ovos por dia,claro.Não precisava de mais.Desculpe ter duvidado.Confesso que ainda me sinto confuso.Vender ovos para alguém pintar!-Apoiou-se no estrado,fitando o cliente com serena admiração  : -Tenho a honrra de estar falando com...
-Luis Dourdil,pintor.
-Agradecido a Vossa Excelência.O pior é que a minha mulher não vai acreditar.

       - Resposta a Matilde- de Fernando Namora  "DOIS OVOS AO FIM DA TARDE" conto verídico sobre Luis Dourdil 











terça-feira, 15 de março de 2016

Arte Portuguesa Sec XX

"Na obra de Luís Dourdil pintura e desenho fazem parte de um único corpo de pensamento plástico parafraseando o Prof. Rocha de Sousa "o lápis consolida-se como instrumento,abre-se sensível e sabiamente à condição do pincel".
Ana Isabel Ribeiro.









Tributo a Dourdil

segunda-feira, 14 de março de 2016

"Escala e Verticalidade na Pintura Mural Luís Dourdil",- M.Ter...

Registos de eventos em homenagem ao pintor Luis Dourdil cujo Centenário se assinalou ao longo de 2014/2015



LUIS DOURDIL 1914 -1989




































                                                         Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olho e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.

 Eugénio de Andrade



LUIS DOURDIL PINTURA E DESENHO





"A arte é o espelho da pátria. 
O país que não 

preserva os seus valores culturais j
amais verá a imagem de sua própria alma."


- Chopin

Na pintura, um dos elementos fundamentais é a cor A relação formal entre as massas coloridas presentes em uma obra constitui sua estrutura básica, guiando o olhar do espectador e propondo-lhe sensações de calor, frio, profundidade, sombra, entre outros. Estas relações estão implícitas na maior parte das obras de Luís Dourdil.

"(...)Nos seus quadros ricos de transparência,sente-se uma passagem perfeita dos primeiros aos últimos planos, e atinge-se o acordo entre a figura humana e a envolvência atmosférica numa harmonia tão íntima num equilíbrio tão justo,que deixa de ser necessário o contorno que individualiza a figura,para que seja amortecido o rigor do contacto entre o sólido e o fluído.
Começou a mostrar as suas pinturas ao tempo em que Frederico George e Maria Keil o faziam também.Mas os  seus primeiros camaradas deixaram há muito de aparecer só Dourdil continua.Por isso,muitas vezes tenho pensado que no plano estético, ele é o único sobrevivente da sua geração".


 RUI MÁRIO GONÇALVES IN Fundão,9 de Dezembro de 1962