quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Pintura Portuguesa Sec. XX

(...) Durante os anos cinquenta ,os artistas modernos portugueses concentravam a sua meditação no confronto de duas concepções pictóricas: a figurativa e a abstracta
Havia os radicais ,a favor de uma ou outra concepção, e havia os que procuravam sínteses.
A novidade estava na arte abstracta.
Mas os mais velhos e os mais informados não podiam esquecer que os pintores naturalistas eram bastante mais dotados e que o Naturalismo permanecia no gosto dominante da sociedade portuguesa.
A vontade de aproveitar o máximo de ambas as concepções, figurativa e abstracta acompanhava a vontade de aproveitar o máximo de todas as artes.

Luís Dourdil foi realizando, lentamente, com segurança uma obra de grande unidade estilística, passando de um realismo minucioso de "Homens de Fogo"(1942) a uma figuração abstractizante.

Rui Mário Gonçalves






                                       Pintura a óleo "Bairro da Lata"© All rights reserved


Pintura Portuguesa Sec. XX





                                                     Pintura a óleo de Luis Dourdil © All rights reserved

                                                     



 Nas suas telas Dourdil, vai encontrando a sua verdade; a velha verdade que não lhe pertence em exclusivo, que é de todos e não admite nada «pessoal» no que se diz ou que se pinta: o mundo existe, a morte existe, o homem é e não é, o mar é o mar e estamos todos cheios de agua de terra e de lama.

De tanto a sua visão projecta-se mais para além da realidade aparente e conduz a um mundo liberto no qual podemos consentir em tudo e no qual nada é incompreensível.

Margarida Botelho __ 75 ARTISTAS EM PORTUGAL - 1989

                                                       Pintura a óleo de Luis Dourdil (fragmento)© All rights reserved

                                                 

"Guardarás numa caixinha

o que não fiz por ti,

a mão que não chegou à sobrancelha

que nem aflorou,

o beijo repetido nas palavras

sem que o tacto

o multiplicasse qual se desejava.


Nessa caixa de nada não tardará depois

a não estares só tu,

a não estar só eu,

a estarmos só os dois."

Pedro Tamen

Pintura Portuguesa Sec.XX


(...)
«Cheguei quase aos sessenta anos e só agora estou convencido de que a minha pintura atingiu a maturidade. Isto é relativo, como todas as coisas neste domínio, mas o que
sinto dá ao meu trabalho uma espécie de consistência duradoura, permite-me absorver cada vez mais o essencial das formas indicativas dos meus temas»

Luís Dourdil in Colóquio junho/75




 

                                              Pintura de Luis Dourdil © All rights reserved



"Estou farto de escavar nos olhos

abismos de ternura

onde cabem todos menos eu.

Estou farto de palavras de perdão

que me ferem a boca

dum frio de lágrimas quentes de punhal.

Estou farto desta dor inútil

de chorar por mim nos outros.

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever

os versos que me fazem doer."


José Gomes Ferreira




Pintura portuguesa Luís Dourdil

       Luís Dourdil © All rights reserved 


"Quase ninguém repara em ninguém. Em parte porque o espaço que nos circunda está cheio de chamadas, de perigos e de júbilos; o ser humano, longe do que se pensa, é o que menos se nota no mundo."

Agustina Bessa-Luís

Pintura e Desenho de Luis Dourdil



"Linhas sensíveis revelam o diálogo entre a mão e o olhar do pintor, na construção de um espaço que é sempre entendido através da sugestão da figura humana, em desenhos que valem por si mesmos, ou em pinturas de harmónicos valores luminosos"

 Rui Mário Gonçalves in 100 Pintores Portugueses do Século XX Publ.Alfa



"Apesar da sua personalidade discreta, Luís Dourdil não deixou de exercer um continuado protagonismo na estagnada cena artística nacional da primeira metade do século, sendo mesmo um dos principais nomes que, vindos dos anos 30,conseguiram projectar com sentido de sobrevivência a sua obra nas décadas seguintes...
Dourdil elege os temas que servirão para dar continuidade a um trabalho feito com a convicção de quem descobrira a força da autenticidade e a prevalência de valores como a coerência. Na constância do seu trabalho são observáveis transformações que não representam mais que o normal fluir de uma linguagem. Grupos humanos surpreendidos nos transportes públicos, no limiar de uma viagem que nunca acaba, porque todos os dias recomeça. Jovens ociosos, envolvendo-se em abraços que parecem fundir os corpos...
Dourdil conquistara a serenidade dos espíritos livres. Era finalmente um Mestre."
- António Bacalhau in Catálogo da Galeria 111-Luis Dourdil Pintura E Desenho/ Setembro de 1991.




" Conheci o pintor Luis Dourdil há mais de quarenta anos quando, já relacionado com assuntos de arte embora longe de vir a ser exclusivamente profissional nesta área, lhe fiz uma encomenda de carácter gráfico. A partir daí nasceu uma amizade, consolidada ao longo dos anos. A presente exposição tem para mim uma intenção e um significado que ultrapassa a minha normal actividade de galerista. Dourdil foi um dos melhores pintores portugueses da sua geração.um grande artista e homem, de quem me orgulho de ter sido amigo."
- Manuel de Brito in Catálogo da Galeria 111-Luis Dourdil Pintura E Desenho/Setembro de 1991.





Luís Dourdil - Foto de Eduardo Gageiro




 

sábado, 5 de setembro de 2020

Busto de Luis Dourdil da autoria de Dorita de Castel-Branco


"... assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

Mia Couto






  Luís Dourdil   Museus  Ano: 1979

  Fundação Calouste Gulbenkian Pintura a óleo sobre tela Allrights reserved 

 CAMJAP http://cam.gulbenkian.pt/CAM/pt/Colecao/Autores - Centro de Arte Moderna   

© All rights reserved


Luís Dourdil Arquivos RTP

 

                                                         

..Programa de artes plásticas apresentado por Fernando Balsinha, dedicado à vida e obra artística do pintor Luís Dourdil, com a entrevista no seu atelier, e ainda o destaque para as exposições individuais e colectivas de arte moderna e contemporânea ocorridas em Lisboa entre 1973 e 1974.


Fotografias de Luís Dourdil; Luís Dourdil folheia livro e trabalha no seu atelier; Rocha de Sousa entrevista Luís Dourdil sobre o início do seu percurso artístico, o carácter autodidata do seu trabalho, a predominância do óleo na sua obra embora use outras técnicas e materiais, a necessidade de conservar as obras de arte, a filiação do seu trabalho na pintura figurativa, a relação entre o artista e a sociedade envolvente e a dificuldade de conciliar a qualidade artística com as especulações do mercado. 50m17: Fotografias de Luís Dourdil; pintor folheia desenhos; retrato de mulher; desenhos e esboços; Luís Dourdil prepara cor em paleta e pinta quadro; pinturas; Luís Dourdil pinta, lê e observa quadro. 57m19: Fernando Balsinha destaca a atenção do programa às exposições patentes em Lisboa. 

 

"Dourdil 

com a sua escala de neutros,trai o natural pendor da sua sensibilidade,fina,recolhida,murmurando discretas harmonias,apenas decifráveis a um repetido e alerta olhar.Há, azuis energéticos,ocres intensos.rosas desmaiados,terras aveludadas e surdas.Verdes líquidos e brônzeo...o vermelho fácil,estridente e oratório não entra nesta seleccionada gama.

Mas há brancos de inesperada riqueza cromática e descobrem-se aparentes transparências. Pintura e desenho irmanam-se e equiparam-se. O artista não obedece a preceitos. Soberba conquista de quem sabe estar sinceramente implantado na Vida e na Arte e,dominando o métier. Esse comportamento é, um acto ético,como ética tem sido a sua conduta de artista, sem impaciências nem «pressas»..."

Adriano Gusmão in Ensaios de Arte e Crítica





                                                Foto de Eduardo Gageiro


"Exposições": imagens de arquivo da exposição do artista plástico húngaro Victor Vasarely na Galeria Quadrum, em março/abril de 1974, da exposição da artista plástica portuguesa Ana Vieira, na Galeria Judite da Cruz, em fevereiro/março de 1974 e da exposição do pintor e ceramista Manuel Cargaleiro, na Galeria de São Mamede, em Novembro/Dezembro de 1973. 01h02m54: "José Cândido": imagens de arquivo de José Cândido, pintor e artista gráfico, a trabalhar no seu atelier e de pinturas; exposição de pintura de Júlio Pomar patente na Galeria 111, em dezembro de 1973; "Gravura": imagens de arquivo do processo de realização de gravuras num atelier didático e da exposição do pintor sueco Bengt Lindstrom, na Galeria 111, em março de 1974. 01h08m48: "Formas de realismo e uma exposição como exemplo": imagens de arquivo da exposição do pintor José Vaz Vieira e do "Salão de Março" patentes na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Dezembro de 1973 e Março de 1974 respectivamente e destaque para os desenhos e ilustrações de Henrique Manuel.

                                        

 Pintura a óleo de Luis Dourdil Colecção particular © All rights reserved


              Artes e Cultura RTP__link

/https://arquivos.rtp.pt/conteudos/luis-dourdil/

quinta-feira, 7 de maio de 2020



A Arte em tempos de pandemia 

"... assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

Mia Couto



Pintura a óleo de LuisDourdil 
Óleo 112 X 85 Ano 1964.

Sala de Imprensa. Dr. António Costa em reunião acerca da pandemia.
Na parede do fundo pintura de Luis Dourdil

Link __https://twitter.com/antoniocostapm/status/1255487987560873991/photo/1

Pintura Portuguesa Séc. XX


Fundação Ilídio Pinto - Luis Dourdil





"Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos.
Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir."

José Saramago
Cadernos de Lanzarote 1994





Óleo sobre tela de Luís Dourdil   
Ano 1984-© All rights reserved




"Fica comigo.
Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância."

(...)

antónio lobo antunes



         
             Luís Dourdil  ano 1983  colecção particular- cortesia do coleccionador  © All rights reserved

"Porque é que se erra tanto no juízo sobre nós?
Porque quando realizamos uma obra damos o máximo que temos.
Acima disso é o invisível. E só quando isso se nos torna visível poderemos medir a distância a que fica o que fizemos. Para ajuizar do que é inferior é preciso ser-se superior.
É por isso que um imbecil facilmente se julga um génio. 
À cautela, portanto, o melhor é não nos julgarmos…"
Vergílio Ferreira



 "Lisboa lota da Ribeira" - Luís Dourdil





                                 Óleo s/ platex ano de  1962 c/particular © All rights reserved

domingo, 5 de janeiro de 2020

Óleo e carvão sobre papel  " Série Alfama" s/data
© All rights reserved


(...) Figuração, abstracção, desenho e pintura foram os binómio férteis em que se construiu a obra de Luís Dourdil. 
Para tema quase exclusivo da sua obra escolheu a figura humana, com as suas formas e gestos, os seus dramas e os seus conflitos corpos postados num mundo real- o do trabalho, das horas de ócio, e desprazer, quase sempre daquelas que vivem nas margem da sociedade (...) 


Dr. Lima de Carvalho in Exposição Homenagem a Luis Dourdil Galeria do Casino Estoril 1990






     Óleo e carvão sobre papel  " Série Alfama" s/data © All rights reserved






sábado, 4 de janeiro de 2020

Pintura Portuguesa Sec XX



"(... )Quando Luís Dourdil representava uma figura humana, interessava-lhe mais o enquadramento, o jogo de verticais e horizontais, os cinzentos e os suaves azuis e rosas, do que o
pormenor anatómico, a particularidade do rosto do modelo.
A vontade de aproveitar o máximo de ambas as concepções, figurativa e abstracta, acompanhava a
vontade de aproveitar o máximo de todas as
artes.
Rui Mário Gonçalves






                             " Série Alfama" Óleo sobre papel © All rights reserved s/data.


Memórias de Luís Dourdil


(...) "Luís Dourdil nasceu em 1914
 é porventura o mais velho autor de pinturas que curiosamente incidem numa temática actual: a juventude marginal que,de "jeans","ténis" e capacetes de motorizadas,se deita descuidadamente nos jardins públicos,onde, ao sol,esboça delicados gestos de ternura,e amor: e retrata também a massa humana e anónima que diariamente se comprime no metropolitano e nos autocarros.Não há rostos na sua figuratização abstractizante,mas apenas corpos vestidos ou volumes diluídos num espaço de luz ténue,que através de uma subtil gama de cinzentos na articulação de formas e planos."(...)


Eurico Gonçalves in Catálogo " A Gaveta do Artista",1986


                                         Óleo s/tela  - "Fase do jovens"© All rights reserved

Memórias de Luis Dourdil

"Numa tarde soalheira, vou atelier do Luís Dourdil e...fui mesmo a tempo de o meu amigo não destruir o quadro que faltava pouco para acabar!
Oh Dourdil não faça isso!
- Acha? Não se aproveita nada!
Olhe a mim até me apetecia pintá-lo, está mesmo «apetitoso»!

Deixei o seu atelier com ele cheio de dúvidas...eis senão quando, vem com o quadro e diz:
- Gracinda acabe o quadro!
Posso? Claro!
E foi-se embora...
Fiquei com a responsabilidade de não apagar as suas primeiras manchas e fiz quase uma urdidura...
Chamei-o para mostrar o resultado, GOSTOU TANTO, que lhe ofereci!
Quando fui a sua casa, lá estava o quadro em grande destaque na sala, e eu fiquei toda vaidosa... e dizíamos "O NOSSO QUADRO PINTADO A QUATRO MÃOS"!
Assim era a nossa amizade e cumplicidade!


Gracinda Candeias











"Nunca fui um paisagista.
Parti sempre da forma real,mas só me interessei de facto pela figura humana.
Parece que apenas nela encontro a beleza e a tragédia,ou partes articuláveis de uma nova ordem,um dinamismo interno-a pintura,antes de tudo"

Luís Dourdil


                                    Crayon s/papel - Luís Dourdil © All rights reserved c.1950

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

"DOIS OVOS AO FIM DA TARDE











Quando o homem saiu de casa,pensou apenas em que lhe 
saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda.Não eram muitas as vezes em que podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício.Sem o aguilhão do relógio.Sem moer-se com atrasos.Tinha um emprego que o enjaulava das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que ronceiras eram as tardes!),com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete na frente,a mão contrafeita.a sujar papéis de olhos fechados, a cidade espalmada nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele,que a via tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão pouco mais tempo lhe restava do que,num rufo,tomava a bica no café mais próximo.Depois vinha o jornal lido no autocarro,o jantar e o serão que não chegava a nada para o muito que lhe daria gosto fazer.A mulher nem se atrevia a propor um passeio.Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e tricotava enquanto ele,numa nuvem de cigarros,refundia, noite após noite,o que começara na véspera. Havia os domingos, é certo,mas os domingos eram a ressaca da semana:a indolência merecida ou desenganada,o pequeno almoço na cama,a música do rádio,a matinée no cinema do bairro e,sobretudo,o fastio das ruas em que a vida se adiava.A verdade é que,quando chegava o Verão,sentia as juntas perras,a moleza pegada ao corpo e,debalde,fugia ao langoroso convite dos cadeirões das esplanadas.Valia-lhe ser um peso pluma.Mas agora que,por um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença,interrompera o emprego para aceitar aquele trabalho,não desperdiçaria o ensejo de um pouco de marcha diária,já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros distavam.Marchar, numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos músculos) também sabia a libertação.O homem, pois,saiu de casa a foi ao atravessar a rua que se lembrou dos ovos.Sem os ovos, nada feito. Estudara as coisas com rigorosa minúcia. Desavesado a certos lugares,e como nunca acompanhara a mulher nas compras,voltou atrás e gritou para cima, pelos roufenhos do intercumunicador:
- Maria,onde poderei encontrar ovos?
A mulher,com risos na voz,elucidou-o:
-Fica-te em caminho.Na Charcutaria"Pôr do Sol".
A Charcutaria "Pôr do SOL".Essa, conhecia ele.Ali a dois passos.Tomava lá café,nada mau,e só um herege podia ficar indiferente à exuberância da apetitosa montra,desde chourições aos papos de anjo de Amarante.Ovos,numa luxaria daquelas?A ideia intimidava-o.Entrou, porém armando-se com o alibi de precisar de cigarros,para o caso de se sentir em apuros.Viu-se,por momentos, aturdido com o labirinto de escaparates,mas logo um senhor mavioso,que o observara de longe,destes para quem"o cliente tem sempre razão",veio desembaraça-lo de hesitações.
-Tem a bondade.Vossa Excelência que deseja?
Adiou a resposta com um distraído ou ainda perturbado:
-Boa tarde.
-Boa tarde a Vossa Excelência. Deseja então...
-Ovos.
-Concerteza.Tem por onde escolher.
-Queria dos melhores.
O logista, que parecia passado a ferro de cima a baixo,assentiu numa reverência e,guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros,apontou com a mão esmerada:
-Aqui os tem Vosssa Excelência.
O homem pegou num,dos ovos,rodou-o vagarosamente entre os dedos, avaliou-lhe o peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz,o lojista interrompeu-o,já numa ênfase um tudo- nada agastada:
-São de primeira qualidade.Com carimbo.Vêm directamente de Albarraque,do produtor.Ovos saloios-e diluiu o olhar impaciente pelo que se passava em redor.
O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente.Pois, lá estava o carimbo.Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia,poderia parecer outra coisa,mas eram mesmo letras,números-um carimbo.Ficava a saber que por aí,se conheciam os ovos de confiança.
-Bem,já vejo que são bons.E suponho que frescos.
-Sem dúvida.
O lojista aguardou uma ordem,ou seja.que o freguês mandasse embalar a quantidade desejada,e,de raspão,atentou em que ele nada trazia consigo,nem um saquinho disfarçado,que servisse para transportar os ovos.Mais que ia dizer-lhe para mandar a encomenda a casa.
-Quantas dúzias?
-Quero dois.
-Disse duas?
-Dois.Dois ovos.
-Vossa Excelência manda.
A imperturbabilidade do logista era um modelo de controle profissional das emoções.De calo no ofício.E também de natural fidalguia,perfeitamente compatível com uma actividade que alguns tinham por servil.Um senhor,enfim.Chamou a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de uma compra choruda.
O homem esteve a trabalhar toda a tarde...
No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se.
O senhor de falas corteses vio-o do balcão,antecipou-se a um marçano,talvez para que não houvesse perda de tempo e inquiriu:
-Hoje,Vossa Excelência deseja...
-Os ovos.Dois.Com carimbo.
Enquanto os escolhia no tabuleiro,o lojista repetiu:
-Dois.Com carimbo. Ei-los.Mais nada?
-Mais nada.
O outro franziu a testa ainda lisa.Só a testa.Mas, ao convidar o freguês a acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos,via-se que lhe era dificil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que alguém pusesse os pés na mais ordinária das lojas.
-Temos um esplêndido queijo de Azeitão.Talvez Vossa Excelência...Mas se prefere da Serra...
_Não quero queijo.
-Ou fiambre.Não encontra que se compare.
-Apenas os ovos.
-Vossa Excelência manda.
À despedida,foi com um tempero de discreta ironia que o senhor afável perguntou;
-Vossa Excelência ficou satisfeito com os ovos de ontem?
-Eram perfeitos.
-Ainda bem.Nunca tivémos uma reclamação.
E o mesmo diálogo com a ocasional variante de meias palavras de embuçada intenção,nos dias que se seguiram.Mas,à quarta vez,depois de o lojista o seduzir em vão,com atuns,salpicões,alheiras de Mirandela,intrigado com a história dos ovos... bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos?(e o almoço,com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou uma talhada de queijo!...Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos.
-Boa tarde.
-Boas tardes a Vossa Excelência.
-Dois ovos como os de ontem.
-Ou como os de anteontem...
Sorriam ambos.A revalar para uma intimidade constrangida.
E estavam naquilo.à mesma hora.E,por ser à mesma hora,o logista já o esperava à porta.
Os dois ovinhos do costume,não é verdade?
-Dois.
-A que horas fecha a charcutaria?
-Às dez, caro senhor.
-Então passarei a vir a roda das nove.
O lojista passou a mão branda pelos cabelos grissalhos,que a brilhantina escurecia e domesticava.Encorajava-se a um reparo.
Vossa Excelência desculpará a inpertinência:mas porque não leva de cada vez uma duzia de ovos,uma dúzia ou outra quantidade qualquer,evitando o incómodo de...
-Prefiro assim.
Vossa Excelência manda.
Os gestos do lojista,porém,a custo dissimulavam o nervosismo,para não dizer a irritação.Aguardava o cliente à hora prevista...
-Vossa Excelência tem frigorifico?
-Tenho,mas porque me pergunta?
-È que se permite uma sugestão,poderia abastecer-se com uma quantidade razoável de ovos,visto que, no frigorifico,consevam-se muitos dias.
-Bem sei.Mas quero-os bem frescos.Dois de cada vez.
-Vossa Excelência é casado?Perdoe o atrevimento.
-Atrevimento?De modo nenhum!Sou casado,sou.Há uns bons anos.
-E janta, portanto, em casa.
-Quase sempre.
-Ah.
E não ousou ir mais longe.Em cada dia ,que entre ambos se insinuava uma convivência de ambiguidades,o lojista avançava em passo miúdo na tentativa de decifrar o mistério...
-Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta  muito de ovos.
-Nem por isso.
Era demais.Aquilo excedia o que a curisidade e a compostura de um homem poderiam suportar.Sentia-se humilhado.Sentia-se humilhado desde o primeiro dia,para que negá-lo?Embrulhou os ovos à má cara,despediu o freguês 
sem a saudação habitual.Porém num repente,foi sobre ele antes que passasse a porta,disse:
-Então os ovos são para alguém da família...
-Não são para mim.
O lojista mais não pôde que abrir a boca...
-Na vez seguinte,o lojista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos...
-Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos?É que, para mim são um pitéu.Omelete com salsa...
-Pois eu nem com salsa nem sem ela.
-Ah.
No dia seguinte o lojista aguardava-o junto ao balcão acompanhado de uma senhora um rapazola de uns catorze anos...,o grupo que paracia posar para um retrato,fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva.Quanto ao lojista entre o acusador e o triunfante:"Eu não vos dizia?É este."Aproximou-se de voz melada e irónica:
-Os dois ovinhos do costume,claro está.
-Aqui tem Vossa Excelência.Bom proveito.
No dia seguinte...
-Perdoe Vossa Excelência:gostaria de confessar uma curiosidade.
-Estou a ouvi-lo
-Bom o caso é este:os ovos,os dois ovos diários. não são para o senhor comer,não são para ninguém comer,pois foi o senhor a dizê-lo;então para que servem?
-Muito simples: para pintar.
O lojista recuou,varado pela zombaria...,apontou o dedo trémulo...
-Diz Vossa Excelência que são para pintar.Tem graça.Carradas de graça.Para pintar de amarelo, bem entendido.
-De azul.Ou de violeta,vermelho,negro.-E após ter sublinhado uma pausa,falando espaçadamente e com uma deslavada
inocência:-Mas às vezes também de amarelo,de facto.
Olhando à roda,não fosse alguém reparar no diálogo,o lojista retorquiu,sem já moderar o sarcasmo:
De azul , de preto, de violeta.Pintando!
-Com ovos
-O senhor, o senhor!-Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas reações.Estava preste a esquecer,pela primeira vez na vida,que um cliente é um cliente.Mesmo sendo tonto ou lunático.Ou provocador.-Mas pintar aonde?
-Numa parede.No fundo da Alameda.Naquelas obras ao lado do Cinema.
-Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume.è nessas obras.
-Mas isso é um café.
Vai ser Grande.O maior de Lisboa.
-A pintar.
-Com ovos,sim.O senhor pode ir lá ver.
-E vou .Quando?
-Quando quizer.Agora mesmo.
O logista ainda incrédulo disse e poderei ir depois de fechar a charcutaria?
-Claro que pode agora já sabe o sitio.
-Então lá estarei.
O homem divertido,foi saboreando a conversa ao longo da rua.Chegou à Alameda sem dar por isso.Começou a preparar a emulsão no almofariz.Aquilo servido numa travessa passaria por maionese.De um lado .a gema de ovo misturada com o óleo de linhaça;do outro o friso de latas com os pigmentos.Como estes eram uma poeira seca,aderiam ao pincel molhado na emulsão.Nada de colas.Estudara a técnica com todo o vagar.Lera alfarrábios,fizera experiências.A gema de ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas.Os antigos não eram tolos.Para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhes a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo.Pintura co séculos de confirmação,resistindo às maiores usuras.Tinha de resultar.Mas quanto fizera sofrer o pobre lojista!Exagerara.Sem premeditação,é certo empurrado pelas circunstâncias,pelos espantos,pelos tais laconismos.No entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotenia daquele viver.Batiam à porta, devia ser ele.Disse para o ajudante:
-Vai abrir  que certamentede é o senhor dos ovos.
-Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras...,sentiu-se engolido por um tunel de surpresas:andaimes,o esgazeamento
de luzes crua.Não viu logo o seu cliente,porque este sumia-se no poleiro de cavaletes. Mas de lá lhe chegou uma vóz familiar:
-Trepe a essa mesa é mais fácil.
Levantou a cabeça para o alto,na direcção das lâmpadas que tinham o feitio de olhos de rã.Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia,uma labareda de cores,a incendiar os esboços de carvão,representando pessoas com o ar extasiado de quem aguarda um cometa no céu.Ei-los,os vermelhos,os azuis,,os amarelos.Aceitou a mão que o ajudava.O cliente vestia um fato de macaco e,na face encovada,ondeava a magia das sombras.
-Repare-dizia-lhe o pintor,numa inflexão paciente e bem humorada-,repare nesse almofariz.E nas cascas dos ovos.É assim que se fáz a mistura.Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.
O visitante permanece silencioso.Esforça-se por recuperar a sua personalidade de lojista

...
-Razão tinhao Vossa Excelência.Dois ovos por dia,claro.Não precisava de mais.Desculpe ter duvidado.Confesso que ainda me sinto confuso.Vender ovos para alguém pintar!-Apoiou-se no estrado,fitando o cliente com serena admiração  : -Tenho a honra de estar falando com...
-Luis Dourdil,pintor.
-Agradecido a Vossa Excelência.O pior é que a minha mulher não vai acreditar.

       - Resposta a Matilde- de Fernando Namora  "DOIS OVOS AO FIM DA TARDE" conto verídico sobre Luis Dourdil