quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Luis Dourdil - OS ENCONTROS SUBMERSOS de Rocha de Sousa

 De cada vez que rompe o seu próprio limite, antigo nas contenções e no equilíbrio da beleza, Dourdil apenas apaga sinais supérfluos, nunca essa memória densa de personagens semi-encobertas que nos revela há dezenas de anos, nem esse modo de fazer displiscente e lírico,nem essa fidelidade a uma caligrafia pela qual simultâneamente nega e torna visível a ficção das coisas. Esse constante retorno a si mesmo, desde a serena tranlucidez da pintura mural às cronicas dos encontros sobre a relva, empurra o autor pela boca dos analistas intensamente atentos à moda dos  modos, para um espaço restrito dos estilos mais ou menos académicos - buraco negro da historia da arte actual portuguesa onde se encobrem nomes e obras...
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Rocha de Sousa Abril 1986
In Cat. da Exp.da Livraria Bertrand

LUIS DIURDIL OU GEOMETRIA SENSÍVEL - FERNANDO DE AZEVEDO

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Luis Dourdil andou por estes meandros da "secção de ouro" e da "porta da harmonia" e de outras formulações da raiz aristotélica e paciolitica, o bastante para aceitar e por ventura admirar a simbologia geométrica de Jacques Villon que muito preciosa lhe foi para essas difíceis abordagens. E andou o tempo bastante para usar esse relacionamento com a independência de quem aprende sozinho e sozinho solitariamente se encontra.(...) Mas o seu abraço ou fala o modo de sorrir eram, sem falha, tão imediatamente acolhedores!
Um pintor que, embora se visse, não se mostrava.(...) O cubista mais racional de todos Juan Gris, o qual dizia que de um rectângulo de cor ou de um plano fazia uma garrafa.O mesmo que Dourdil à distância fez com as figuras que foi encontrando numa espécie de "promenade" ritualizada ao sabor de uma simpatia humana desperta ao espectáculo da vida.Seres do acaso uns vagabundos,"motards", corpos perdidos sem desejo num banco de jardim, vultos: ou outro lado da vida, a inteireza de um corpo de peixeira na sua ortogonalidade sensual, diálogos sussurados de vendedeiras de mercado, belas como estátuas , seres todos eles, uns e outros de que um mundo suporta a existência ou, não por vezes, a sofrida inexistência.
Por esse labirinto ocupado que são a composição e a cena de um quadro de Dourdil passa, sente-se, e ouve-se um profundo silêncio. A força dramática da obra...

Alguma coisa desse silêncio e dessa gravidade assenta naqueles cinzentos, por vezes frios com que enroupa a sua humaníssima figuração.
Luis Dourdil é finalmente um admirável pintor do silencioso achamento da totalidade.
                                                              Fernando de Azevedo (2001)
In Cat. da Exp. Palácio Galveias Abril 2001

- Rocha de Sousa - DOURDIL: IMAGEM POÉTICA

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AS figuras do início sofriam discretas geometrizações,beneficiando de uma osmose quase gráfica esplendorosa,dos fragmentos morfológicos e da sua quase solene presença no espaço. Foi esta técnica que, sempre semelhante na diferença, estruturou cada vez mais o trabalho plástico do artista,tanto no desenho como na pintura.
Exímio na têmpera e no óleo, Dourdil era refém do seu grande talento, da sua elegância plástica, na forma de manchar, de encandear as matérias, de conferir presença a restos das linhas de estrutura e de contorno - no imenso bom gosto, enfim, que imprimia a essas presenças ou misturas,pintura cada vez mais no tempo, pintura em todo caso sempre figurativa, filtragem do visível, imagem cuja carga poética se despojava, comovente, num espaço sem referências adicionais.
Foi recorrendo a essa espécie de fragmentos modeladores, a essa secreta geometria que sustentava silhuetas e contornos,anatomias e olhares, que o pintor realizou uma das mais belas pinturas murais - entre tapeçarias e frescos - de toda a arte portuguesa contemporânea
o painel do café Império, numa parede de faustosa horizontalidade e com a forte presença dos seus 48 metros quadrados, regular, dir-se-ia inatacável. Aí, usando têmpera de ovo, Dourdil criou um imenso espaço cénico, nem profundo nem apenas bidimensional, povoado de figuras humanas, ora sentadas ora de pé, em grupos também, na simplificação nivelada então garantida pela perfeição das soluções, dos meios tons, das sombras suaves e das distâncias lumínicas, rectangulares, tudo apreciável em travelling lateral, o lugar ou o labirinto da meia festa daquela gente emblemática, a execução solta e exacta, os valores macios, as arestas mais pressentidas do que ostentadas, um murmúrio de vida colectiva a mover-se em câmara lenta, sublinhando a ideia sem nomes do grande espaço cénico do café, memória de belas salas de fumo de teatros e cinemas.
Em certo sentido, no cume de uma obra a fazer-se, esta pintura já perdida pela incúria dos homens e dos seus interesses espúrios, resumia o percurso em curva longa e segura do trabalho a óleo que Dourdil trouxe de um pós neo-realismo já desfocado para a orla de uma abstracção incompleta, lírica, estilisticamente superior.
                                                                                  (...)
Rocha de Sousa


In catálogo da exposição Pintura Portuguesa Séc.XX.Coimbra:Museu da Cidade-Sala da Cidade,20 de Set.2001-27-Jan.2002