quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

- Rocha de Sousa - DOURDIL: IMAGEM POÉTICA

(...)
AS figuras do início sofriam discretas geometrizações,beneficiando de uma osmose quase gráfica esplendorosa,dos fragmentos morfológicos e da sua quase solene presença no espaço. Foi esta técnica que, sempre semelhante na diferença, estruturou cada vez mais o trabalho plástico do artista,tanto no desenho como na pintura.
Exímio na têmpera e no óleo, Dourdil era refém do seu grande talento, da sua elegância plástica, na forma de manchar, de encandear as matérias, de conferir presença a restos das linhas de estrutura e de contorno - no imenso bom gosto, enfim, que imprimia a essas presenças ou misturas,pintura cada vez mais no tempo, pintura em todo caso sempre figurativa, filtragem do visível, imagem cuja carga poética se despojava, comovente, num espaço sem referências adicionais.
Foi recorrendo a essa espécie de fragmentos modeladores, a essa secreta geometria que sustentava silhuetas e contornos,anatomias e olhares, que o pintor realizou uma das mais belas pinturas murais - entre tapeçarias e frescos - de toda a arte portuguesa contemporânea
o painel do café Império, numa parede de faustosa horizontalidade e com a forte presença dos seus 48 metros quadrados, regular, dir-se-ia inatacável. Aí, usando têmpera de ovo, Dourdil criou um imenso espaço cénico, nem profundo nem apenas bidimensional, povoado de figuras humanas, ora sentadas ora de pé, em grupos também, na simplificação nivelada então garantida pela perfeição das soluções, dos meios tons, das sombras suaves e das distâncias lumínicas, rectangulares, tudo apreciável em travelling lateral, o lugar ou o labirinto da meia festa daquela gente emblemática, a execução solta e exacta, os valores macios, as arestas mais pressentidas do que ostentadas, um murmúrio de vida colectiva a mover-se em câmara lenta, sublinhando a ideia sem nomes do grande espaço cénico do café, memória de belas salas de fumo de teatros e cinemas.
Em certo sentido, no cume de uma obra a fazer-se, esta pintura já perdida pela incúria dos homens e dos seus interesses espúrios, resumia o percurso em curva longa e segura do trabalho a óleo que Dourdil trouxe de um pós neo-realismo já desfocado para a orla de uma abstracção incompleta, lírica, estilisticamente superior.
                                                                                  (...)
Rocha de Sousa


In catálogo da exposição Pintura Portuguesa Séc.XX.Coimbra:Museu da Cidade-Sala da Cidade,20 de Set.2001-27-Jan.2002

Nenhum comentário:

Postar um comentário