quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Centro de Arte Manuel Brito

Coleção Manuel de Brito

Esta coleção foi feita ao longo de 40 anos com a disponibilidade económica possível, procurando dignificar sobretudo os artistas portugueses e ajudar a criar a memória de uma época. A Coleção Manuel de Brito está ligada intrinsecamente ao projecto da Galeria 111.
A Galeria 111 iniciou a sua atividade no dia 3 de Fevereiro de 1964. Quando a pequena sala, com as três paredes revestidas de serapilheira e um banco ao longo da montra, anexa à livraria especializada em livros universitários, abriu as portas as suas perspectivas comerciais eram poucas. Sem museus ou centros institucionais dedicados à arte contemporânea, sem mercado e sem espírito de coleccionismo, as galerias de arte simplesmente não tinham razão de existir, ou, se existiam, a sua vida era muito curta.
Neste ano de 1964, a Pop Art apareceu em força na Bienal de Veneza com Robert Rauschenberg, Jim Dine e Claus Oldenberg. Rauschenberg recebeu o grande prémio da Bienal. Em Kassell a Documenta III abriu com o lema Qualidade, não Quantidade. O centro da arte internacional mudara-se de Paris para Nova Iorque.
E o que se fazia em Portugal nestes tempos de tanta agitação? Vivia-se um clima de grande repressão política, com a juventude a partir para as guerras de África. A contestação universitária mantinha-se depois das greves académicas de 1962. A PIDE estava activa e vigilante. A livraria foi visitada pelos seus agentes regularmente desde a sua abertura em 1959 até Abril de 1974.
Na livraria, ainda antes da galeria abrir, já se mostravam as peças da Rosa Ramalho. Na galeria pretendia-se mostrar as obras de artistas jovens que nunca tinham exposto. No primeiro ano expuseram, pela primeira vez, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, António Palolo, Santa Bárbara e António Sena.
Vivia-se num clima de amadorismo, o catálogo era executado em duplicador e impresso em papel de embrulho. Os quadros não se vendiam. Os coleccionadores desta época eram poucos e só compravam artistas de nome feito, não estando interessados nos jovens talentos. Instituições e museus compradores também não havia.
Muito lentamente vai-se construindo um mercado tendo em conta a cumplicidade entre os artistas e a galeria. Como a galeria está situada junto à Cidade Universitária, por ela passaram centenas de alunos de Letras, Direito e Medicina que de simples observadores, com o passar dos anos, se tornaram compradores.
A galeria, sempre ligada à livraria, só vai atingir o estatuto profissional quando Jorge de Brito se torna o maior coleccionador português. A primeira transacção importante foi a venda dos quadros do Grupo do Leão, pertencentes a Francisco Ramos da Costa, então exilado em Paris. A partir daí realizaram-se inúmeras aquisições de obras de arte portuguesa e estrangeira em todo o mundo. Abriram-se as portas do mercado internacional e a galeria passou a ser conhecida.
A galeria deu apoio à Arte Portuguesa no estrangeiro, não só adquirindo e fazendo entrar no país a produção de artistas nacionais radicados no exterior, como ajudando a difundir a sua obra em galerias e editoras internacionais.
Colaborou activamente na divulgação da arte portuguesa cedendo grande número de obras do seu acervo para as mais importantes exposições realizadas em Portugal e no estrangeiro organizadas pelo Ministério da Cultura, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Fundação Calouste Gulbenkian, Sociedade Nacional de Belas Artes, Museus e Instituições Culturais.
Entre os fatos mais importantes a aquisição dos frescos de Almada Negreiros que se encontravam em vias de destruição no Cine San Carlos, em Madrid, e de duas enormes pinturas de Vieira da Silva, a partir das quais se fizeram as tapeçarias para a Universidade de Basileia e que agora se encontram no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

                                      Menez, Sem Titulo, 1988.


A partir de 1971 estendeu a sua actividade ao Porto com a fundação da Galeria Zen. Após grandes obras de restauro, reabriu em 1996 com a designação Galeria 111 Porto.
Sempre participou nas principais feiras de Arte, desde a primeira MARCA MADEIRA, em 1987, até à Arte Lisboa de 2006. Em Madrid participou na ARCO desde 1986 e em Paris na FIAC.
Em Macau foram realizadas importantes exposições inicialmente no Museu Luís de Camões a partir de 1981 e depois na galeria de exposições temporárias do Leal Senado – Júlio Pomar, Ana Vidigal, Eduardo Luiz, Paula Rego, Menez, António Dacosta e “Geração XXI”, de 1989 a 2002. Graça Morais expôs em 1990, no Pavilhão do Jardim Lou Lim Ioc, numa iniciativa do Instituto Cultural de Macau. Em Pequim, em 1995, organizou-se a exposição Artistas Portugueses, na Casa do Povo na Cidade Proibida, no âmbito da visita do Presidente Mário Soares à China. Em 2000, realizou-se uma exposição de Júlio Pomar no Centro de Arte Contemporânea de Macau, a convite da Fundação Oriente. Esta exposição foi apresentada também na Galeria Nacional em Pequim, em 2001.
Em Dublin, em 1999, organizou-se a exposição Five Portuguese Women (Menez, Paula Rego, Graça Morais, Ana Vidigal e Fátima Mendonça) na galeria do Guinness Hopstore, quando da visita do Presidente Jorge Sampaio à Irlanda.

 

                                                   Mário Eloy, Amor, 1935


Em Espanha organizou-se, em 1989, a exposição Portugal Hoy – 30 Pintores no Centro Cultural Conde Duque em Madrid. Em 1992, Pintura y Grabado Portugueses Contemporáneos na Universidad Hispano Americana Santa Maria de la Rábida, em Huelva e, em 2000, Diez Artistas Portugueses Contemporáneos – Colección Manuel de Brito no Museo de la Ciudad, em Madrid.
Em 1994, no âmbito de Lisboa - Capital Europeia da Cultura foi organizada a exposição Colecção Manuel de Brito – Imagens da Arte Portuguesa do Século XX no Museu do Chiado. Esta exposição foi posteriormente apresentada em 1995 em Macau, na Galeria do Forum, a convite do Leal Senado, no MASP em São Paulo e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.



Luis Dourdil  1973

Ao longo dos anos, como sempre existiu uma grande cumplicidade com os artistas, houve sempre a preocupação de guardar as peças mais significativas de cada fase. Assim se foi construindo a colecção. Estão representados praticamente todos os artistas que expuseram na galeria. Destacam-se os núcleos mais significativos de obras dos artistas Eduardo Batarda, António Dacosta, José Escada, Eduardo Luiz, Jorge Martins, Menez, Graça Morais, António Palolo, Costa Pinheiro, Júlio Pomar, Paula Rego, Ana Vidigal e Fátima Mendonça.




                                           Amadeo de Souza Cardoso, O pobre louco, 1915


A coleção abrange obras de 1914 até à actualidade. Começa com dois trabalhos de Amadeo de Sousa-Cardoso, a que se seguem Francis Smith, Eduardo Viana, os baixo-relevos de Almada Negreiros, provenientes do Cine San Carlos de Madrid, António Soares, Jorge Barradas, Milly Possoz, Abel Manta, Carlos Botelho, Máro Eloy, António Pedro, Cândido da Costa Pinto, Mário Dionísio, Mário Henrique Leiria, Carlos Calvet, Maria Helena Vieira da Silva, Dordio Gomes, Augusto Gomes, Joaquim Rodrigo, Luís Dourdil, João Hogan, Vasco Costa, Nadir Afonso, Júlio Resende, Rolando Sá Nogueira, António Charrua, Marcelino Vespeira, Rogério Ribeiro, Bartolomeu dos Santos, Nikias Skapinakis, Eurico Gonçalves, António Quadros, Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny, António Areal, João Abel Manta, Lourdes de Castro, João Vieira, René Bértholo, Joaquim Bravo, José Rodrigues, Manuel Baptista, Ângelo de Sousa, Álvaro Lapa, Espiga Pinto, Jorge Pinheiro, Gonçalo Duarte, Henrique Ruivo, Eduardo Nery, José de Guimarães, Noronha da Costa, Victor Fortes, Jacinto Luís, Pedro Avelar, Carlos Carreiro, Fátima Vaz, Guilherme Parente, Fernando Direito, David de Almeida, Lisa Santos Silva, Fernando Calhau, Julião Sarmento, Ruy Leitão, João Penalva, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Xana, Ilda David’, Miguel Rebelo, Urbano, Rui Sanches, José Pedro Croft, Rui Chafes, Miguel Palma, Miguel Telles da Gama, Isabelle Faria, João Leonardo, João Pedro Vale, Joana Salvador, Joana Vasconcelos, João Pedro Vale, João Leonardo e Francisco Vidal.

Luis Dourdil a identidade de um estilo

A arte da amizade.



                                 Carvão s/Papel 100 X70 de 1978 © All rights reserved


«Também os amigos chegam muitas vezes pelo maior dos acasos. (...) 
Às vezes vivemos, anos e anos, sempre com amigos; é uma sorte rara. Outras vezes, dependendo das suas ocupações e das nossas, e do sítio em que eles se encontram e aquele em que nós estamos, vão e vêm, estão presentes às vezes durante semanas, ou meses, ou apenas alguns dias. Mas a amizade verdadeira é uma aquisição duradoura. Mesmo depois de vinte e cinco anos de ausência, abraçamo-nos sem qualquer alteração. 

                    Carvão s/papel 100 X 70 c 1980 "Fase dos jovens" © All rights reserved


Acredito, aliás, que a amizade, como o amor do qual participa, exige quase tanta arte como uma figura de dança bem conseguida. É preciso um grande entusiasmo e uma grande contenção, muitas trocas de palavras e muitos silêncios. E, sobretudo, muito respeito. O sentimento da liberdade do outro, da dignidade do outro, a aceitação, sem ilusões, mas também sem a menor hostilidade ou o mínimo desprezo, de um ser tal como ele é.» 

Marguerite Yourcenar, 
De olhos abertos 

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

DOIS OVOS AO FIM DA TARDE revista EVA, no número de Natal do ano de 1969,


Revista "EVA" Natal de 1969 é editado o Conto escrito por Fernando Namora de Luís Dourdil
" Dois OvOs ao fim da Tarde" com uma ilustração de Ângelo Serra

Quando o homem saiu de casa, pensou apenas em que lhe saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda. Não eram muitas as vezes em que podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício. Sem o aguilhão do relógio. Sem moer-se com atrasos. Tinha um emprego que o enjaulava das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que ronceiras eram as tardes!),com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete na frente, a mão contrafeita, a sujar papéis de olhos fechados, a cidade espalmada nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele, que a via tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão pouco mais tempo lhe restava do que, num rufo, tomava a bica no café mais próximo. Depois, vinha o jornal lido no autocarro, o jantar e o serão que não chegava a nada para o muito que lhe daria gosto fazer. A mulher nem se atrevia a propor um passeio. Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e tricotava enquanto ele, numa nuvem de cigarros, refundia, noite após noite, o que começara na véspera. Havia os domingos, é certo, mas os domingos eram a ressaca da semana: a indolência merecida ou desenganada, o pequeno almoço na cama, a música do rádio, a matinée no cinema do bairro e, sobretudo, o fastio das ruas em que a vida se adiava.

A verdade é que, quando chegava o Verão, sentia as juntas perras, a moleza pegada ao corpo e, debalde, fugia ao langoroso convite dos cadeirões das esplanadas. Valia-lhe ser um peso pluma. Mas agora que, por um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença, interrompera o emprego na fábrica para aceitar aquele trabalho, não desperdiçaria o ensejo de um pouco de marcha diária, já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros distavam. Marchar, numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos músculos), também sabia a libertação. O homem, pois, saiu de casa e foi ao atravessar a rua que se lembrou dos ovos. Sem os ovos, nada feito. Estudara as coisas com rigorosa minúcia. Desavezado a certos lugares, e como nunca acompanhara a mulher nas compras, voltou atrás e gritou para cima, pelos buraquinhos roufenhos do intercomunicador:

- Maria: onde poderei encontrar ovos?

A mulher, com risos na voz, elucidou-o:

- Fica-te em caminho. Na charcutaria “Pôr do Sol”.

A charcutaria “Pôr do Sol”. Essa, conhecia ele. Ali a dois passos. Tomava-se lá café, nada mau, e só um herege podia ficar indiferente à exuberância da apetitosa montra, desde chourições aos papos-de-anjo de Amarante. Ovos, numa luxaria daquelas? A ideia intimidava-o. Entrou, porém, armando-se com o alibi de precisar de de cigarros, para o caso de se sentir em apuros. Viu-se, por momentos, aturdido com o labirinto de escaparates, mas logo um senhor mavioso, que o observara de longe, destes para quem "o cliente tem sempre razão", veio desembaraça-lo de hesitações.

- Tem a bondade. V. Ex.ª que deseja?

Adiou a resposta com um distraído ou ainda perturbado:

- Boa tarde.

- Boa tarde a V. Ex.ª. Deseja então...

- Ovos. - Com certeza. Tem por onde escolher.

- Queria dos melhores.

O lojista, que parecia passado a ferro de cima a baixo, assentiu numa reverência e, guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros, apontou com a mão esmerada:

- Aqui os tem V. Ex.ª.

O homem pegou num dos ovos, rodou-o vagarosamente entre os dedos, avaliou-lhe o peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz, o lojista interrompeu-o, numa ênfase um tudo nada agastada:

- São de primeira qualidade. Com carimbo. Vêm directamente de Albarraque, do produtor. Ovos saloios - e diluiu o olhar impaciente pelo que se passava em redor.

O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente. Pois, lá estava o carimbo. Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia, poderia parecer outra coisa, mas eram mesmo letras, números - um carimbo. Ficava a saber que, por aí, se conheciam os ovos de confiança.

- Bem, já vejo que são bons. E suponho frescos.

– Sem dúvida.

O lojista aguardou uma ordem, ou seja, que o freguês mandasse embalar a quantidade desejada, e, de raspão, atentou em que ele nada trazia consigo, nem um saquinho disfarçado, que servisse para transportar os ovos. Mais um que ia dizer-lhe para mandar a encomenda a casa.

- Quantas dúzias?

- Quero dois.

- Disse duas?

- Dois. Dois ovos.

- V.Ex.ª manda.

A imperturbabilidade do lojista era um modelo de controlo profissional das emoções. De calo no ofício. E também de natural fidalguia, perfeitamente compatível com uma actividade que alguns tinham por servil. Um senhor, enfim. Chamou a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de uma compra choruda.

O homem esteve a trabalhar toda a tarde. Um nadinha fatigado das pernas, pois talvez o passeio excedesse os cálculos que fizera a sua resistência de andarilho, mas ágil e revigorado por dentro, quase eufórico. As coisas haviam começado a seu contento. Depois do jantar, ainda lhe picou o desejo de um pulo à Alameda, só para rever o que tinha esboçado ou adiantar uns retoques; todavia, prevaleceu a ideia de ir ao cinema. Ia jurar que a mulher pensara no mesmo. A frase “por hoje, acho que basta” não fora de

todo inocente. No trajecto, parou junto da montra da charcutaria e disse o que ela já sabia:

- Foi daqui que levei os ovos.

No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se. O senhor de falas corteses vi-o do balcão, antecipou-se a um marçano, talvez para que não houvesse perda de tempo, e inquiriu:

- Hoje, V. Ex.ª deseja...

- Os ovos. Dois. Com carimbo.

Enquanto os escolhia no tabuleiro o lojista repetiu:

- Dois. Com carimbo. Ei-los. Mais nada?

- Mais nada.

O outro franziu a testa ainda lisa. Só a testa. Mas, ao convidar o freguês a acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos, via-se que lhe era difícil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que alguém pusesse os pés na mais ordinária das lojas.

- Temos um esplêndido queijo de Azeitão. Talvez V. Ex.ª... Mas se prefere da Serra...

- Não quero queijo.

- Ou fiambre. Não encontra que se lhe compare.

- Apenas os ovos.

- V. Ex.ª manda.

À despedida, foi com um tempero de discreta ironia que o senhor afável lhe perguntou:

- V. Ex.ª ficou satisfeito com os ovos de ontem?

- Eram perfeitos.

- Ainda bem. Nunca tivemos uma reclamação.

E o mesmo diálogo, com a ocasional variante de meias palavras de embuçada intenção, nos dias que se seguiram. Mas, à quarta vez, depois de o lojista, o seduzir em vão, com atuns, salpicões, alheiras de Mirandela, o homem caiu em si: o senhor da charcutaria, que punha igual solicitude e dignidade na venda de caviar ou de sardinhas, e, por certo, traíra a vocação de mestre de cerimónias, devia andar justificadamente intrigado com a história dos ovos e não menos com o seu desdém por tanto petisco ali exibido. Dois ovos diários, apenas dois. Dos saloios. Carimbados. Vá lá que um tipo, solteirão ou acidentalmente com a mulher de visita aos parentes, recorra a um par de ovos estrelados num dia em que lhe enjoe o restaurante - mas bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos (e o almoço, com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou uma talhada de queijo!... Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos. Uns bracinhos de criança. Um rosto de fomes.

- Boa tarde.

- Boas tardes a V. Ex.ª.

- Dois ovos como os de ontem.

- Ou como os de anteontem...

Sorriram ambos. A resvalar para uma intimidade constrangida.

E estavam naquilo. À mesma hora. E, por ser à mesma hora, o lojista já o esperava à porta.

- Os dois ovinhos do costume, não é verdade?

Até que, alongados os crepúsculos, naquele súbito verão que comia as noites, o homem decidiu voltar ao emprego e prosseguir a sua secreta tarefa nas folgas que já não pertenciam à fábrica. O trabalho tomara corpo. Daí em diante, seria como descer uma colina depois de atingido o cume. Com a certeza de chegar ao fim. O seu horário teria de mudar. E, portanto, também o da compra dos ovos. Na véspera de se apresentar no emprego, informou-se:

- A que horas fecha a charcutaria?

- Às dez, caro senhor.

- Então passarei a vir à roda das nove.

O lojista passou a mão branda pelos cabelos grisalhos, que a brilhantina escurecia e domesticava. Encorajava-se a um reparo.

- V. Ex.ª desculpará a impertinência; mas porque não leva de cada vez uma dúzia de ovos, uma dúzia ou outra quantidade qualquer evitando o incómodo de ...

- Prefiro assim.

- V. Ex.ª manda.

Os gestos do lojista, porém, a custo dissimulavam o nervosismo, para não dizer a irritação. Aguardava o cliente à hora prevista, ia até à porta sondar os transeuntes, tentando lobrigá-lo à distância, mesmo que na charcutaria não houvesse mãos a medir, e, no seu rosto, a amabilidade abria fissuras de azedume e desconfiança. Por certo, acabaria por explodir.

- V. Ex.ª tem frigorifico?

- Tenho, mas porque mo pergunta?

- É que, se me permite uma sugestão, poderia abastecer-se com uma quantidade razoável de ovos, visto que, no frigorífico, conservam-se muitos dias.

- Bem sei. Mas quero-os bem frescos. Dois de cada vez.

- V. Ex.ª é acautelado.

- Há quem pense o contrário. Minha mulher, entre mais gente.

- Ah, V. Ex.ª é casado. Perdoe o atrevimento.

- Atrevimento? De modo nenhum! Sou casado, sou. Há uns bons anos.

- E janta, portanto, em casa…

- Quase sempre.

- Ah. E não ousou ir mais longe.

Em cada dia, já que entre ambos se insinuara uma convivência de ambiguidades, o lojista avançava em passo miúdo na tentativa de decifrar o mistério. Pois mistério havia. Salvo se o cliente era um destes excêntricos como tantos que ele, profissional maduro, conhecera em décadas de ofício. E lembrava a frase de um velho comerciante que o industriara nas artes do balcão: “quem atura o mundo …” E, ali, naquele lugar, muito se via e aturava.

- Pelo que deduzo, V. Ex.ª gosta muito de ovos.

- Nem por isso.

Era demais. Aquilo excedia o que a curiosidade e a compostura de um homem poderiam suportar. Sentia-se humilhado. Sentia-se humilhado desde o primeiro dia, para que negá-lo? Embrulhou os ovos à má cara, despediu o freguês sem a saudação habitual. Porém, num repente, foi sobre ele antes que passasse a porta e, empalidecido do esforço de se dosear, disse:

- Então, se os ovos não são para V. Ex.ª, são para alguém da família – e a palidez degenerou em rubor.

- Não, são para mim.

O lojista mais não pôde que abrir a boca. As palavras tinham desfalecido numa praia de sufocação. A verdade é que, excêntrico, asno ou sádico, o cliente, se era seu propósito destemperar um homem que pesava o condimento, conseguira-o. Tanto na loja como em casa. Uma hora antes de prever a chegada daquele magrizela que comprava ovos, dois por dia, e nem sequer os comia com gosto, já se via incapaz de atender as pessoas com a serenidade e a polidez a que se impunha, e, em casa, ora sorumbático, ora mesmo agreste, ele que fora sempre benigno, tinha de ouvir remoques como este:

- Parece que o senhor dos ovos foi lá hoje. Pelos teus nervos …

- Vai sempre.

- E isso molesta-te?

- Indigna-me. Creio que troça de mim.

- Não penses mais nele. Deve ser um teso qualquer que vive só, sem frigorífico, embora faça julgar o contrário, a quem o dinheiro mal chega para dois ovos.

- Não, a explicação não deve ser tão simples. Ele troça. E hei-de dizer-lho.

Na vez seguinte, o lojista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos mais alentados e comentou:

- Sabe V. Ex.ª que tenho prazer em vender ovos? É que, para mim, são um pitéu. Cozinhados de qualquer maneira, embora dê preferência à omeleta. Com salsa.

- Pois eu nem com salsa nem sem ela.

- Mexidos?

- De maneira nenhuma.

Quanto lhe apetecia desafoguear-se com um insulto, ou esmagar os dois ovos na petulância daquele gozador! Mas não: respeitava-se.

- E, se a pergunta não for inconveniente, poderei saber quem fornecia os ovos a V. Ex.ª antes de se tornar freguês desta casa?

- Ninguém. Comecei a comprar ovos no primeiro dia em que aqui entrei.

A mudez de um berro paralisado, a ira dolorosa, o clarão instantâneo a ofuscar-lhe os olhos. Mas conteve-se.

- Para ser franco, V. Exª. confunde-me. Desejo-lhe muito boas tardes.

O mesmo que dizer: vá-se embora, vá-se embora antes que eu perca a cabeça. E reproduzindo o diálogo à mulher, num serão de nervos, ela, já preocupada, insinuou:

- O homem vai de facto todos os dias? Não será imaginação tua?

Encararam-se ambos com suspeita. Por fim, de expressão magoada e sombria, ela teve um remate áspero:

- Um de vocês está doido.

A tarde viera oprimida e turva. Corria um vento saturado de chuvas frustradas. “O tempo vai mudar” – disse alguém na rua, quando o homem se preparava para transpor o umbral da charcutaria. Entrou a cogitar nessas palavras, comentando para si que talvez já não pudesse fazer o trajecto a pé, e, assim alheado, não deu logo por uma cena imprevista: o lojista, junto ao balcão, aguardava-o acompanhado de uma senhora idosa e de um rapazola de uns catorze anos, olhos muito abertos, vagamente temerosos. O grupo, que parecia a posar para um retrato, fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva. Quanto ao lojista, entre acusador e triunfante, não seria difícil pôr-lhe na boca o desabafo: “Eu não vos dizia? É este.” Aproximou-se de voz melada e irónica:

- Os dois ovinhos do costume, claro está.

Refinou uma vez mais na escolha, teve injustificados primores na embalagem e, por último, quase com ternura, acomodou-lhos nas mãos:

- Aqui tem V. Ex.ª. Bom proveito.

No rosto da senhora idosa, o homem viu enleio e compaixão, e, no fedelho, um pasmo de medo.

O lojista não deixou de confirmar-lhe que,

- Ontem, minha mulher e o meu filho estavam aqui comigo.

- Reunião de família…

- Passaram por acaso.

- Tive prazer em conhecê-los.

- Eles também. Quer dizer: às vezes falamos do senhor lá em casa.

- De mim?

O dono da charcutaria pareceu ponderar numa resposta. Tinha os braços caídos à frente, os dedos cruzados, a refrearem-se. Mas, num momento, um impulso desfez-lhe a atitude, chicoteou-lhe a voz:

- Perdoe V.Ex.ª: gostaria de confessar uma curiosidade.

- Estou a ouvi-lo.

- Bom. O caso é este: os ovos, os dois ovos diários, não são para o senhor comer, não são para ninguém comer, pois foi o senhor a dizê-lo; então para que servem?

- Muito simples: para pintar.

O lojista recuou, varado pela zombaria. Ia a desmandar-se num riso, que podia ser também um soluço, ou uma imprecação, mas, depois, bastou-se com o indicador a apontar, muito trémulo, ao nariz do cliente:

- Diz V. Ex.ª que são para pintar. Tem graça. Carradas de graça. Para pintar de amarelo, bem entendido.

- De azul. Ou de violeta, vermelho, negro. - E após ter sublinhado uma pausa, falando espaçadamente e com uma deslavada inocência: - Mas às vezes também de amarelo, de facto.

Olhando à roda, não fosse alguém reparar no diálogo, o lojista retorquiu, sem já moderar o sarcasmo:

- De azul, de preto, de violeta. Pintando!

- Com ovos.

- O senhor, o senhor! – Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas reacções. Estava prestes a esquecer, pela primeira vez na vida, que um cliente é um cliente. Mesmo sendo tonto ou lunático. Ou provocador. – Mas pintar aonde?

- Numa parede.

- Numa parede. A pintar uma parede com ovos. De violeta. Mas aonde, em que casa, em que sítio?

- No fundo da Alameda. Naquelas obras ao lado do cinema.

- Ao lado do… No fundo da Alameda.

- Há um tapume. É nessas obras.

- Mas isso é um café.

- Vai ser. Grande. O maior de Lisboa.

- A pintar…

- Com ovos, sim. O senhor pode ir lá ver.

- E vou. Quando?

- Quando quiser. Agora mesmo.

O lojista ainda se defendia da incredulidade ou da boa-fé. Estava perturbado. Havia um distúrbio dentro de si, a pedir uma urgente mas precavida arrumação.

- E poderei ir depois de fechar a charcutaria?

- Claro que pode. Agora já sabe o sítio.

- Então, lá estarei.

O homem, divertido, foi saboreando a conversa ao longo da rua. Chegou à Alameda sem dar por isso. Ou seria da ligeireza das pernas, que se tinham desenferrujado no treino diário. Daí a semanas, tapume abaixo! Mas não era a fachada que lhe interessava, não. Pôs-se a assobiar enquanto preparava a emulsão no almofariz. Aquilo, servido numa travessa, passaria por maionesa. De um lado, a gema de ovo

misturada com o óleo de linhaça; do outro, o friso de latas com os pigmentos. Como estes eram uma poeira seca, aderiam ao pincel molhado na emulsão. Nada de colas. Estudara a técnica com todo o vagar. Lera alfarrábios, fizera experiências. A gema de ovo fora, até ao século XVI, um dos veículos das tintas. Os antigos não eram tolos, para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhe a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo. Pintura com séculos de confirmação, resistindo às maiores usuras. Tinha de resultar. Mas quanto fizera sofrer o pobre lojista! Exagerara. Sem premeditação, é certo, empurrado pelas circunstâncias, pelos espantos, pelos tais laconismos. No entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotonia daquele viver. Entre uma loja e uma fábrica, o diabo que escolhesse!

Batiam à porta, devia ser ele. Disse para o ajudante:

- Vai abrir, que certamente é o senhor dos ovos.

Era. A rondar com precaução. O rapaz, mariola, tentou-se a uma gaiatice:

- O senhor não se enganou na porta?

O lojista esfriou-o com um olhar severo.

- Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras.

Esteve para acrescentar: “Ou diz que pinta”, mas o peralvilho não merecia confianças.

- Desça. Cuidado com os degraus.

Podiam dar-lhe outro nome: umas ripas encavalitadas sobre um alçapão. E sentiu-se engolido por um túnel de surpresas: andaimes, o esgazeamento de luzes cruas a denunciar intrusos, o crescer súbito dos volumes até aí ofuscados. Não viu logo o cliente porque este sumia-se no poleiro dos cavaletes. Mas de lá lhe chegou a voz familiar:

- Trepe a essa mesa. É mais fácil.

Levantou a cabeça para o alto, na direcção das lâmpadas, que tinham o feitio de olhos de rã. Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia uma labareda de cores, a incendiar os esboços de carvão, representando pessoas com o ar extasiado de quem aguarda que passe um cometa no céu. Ei-los, os vermelhos, os azuis, os amarelos. Aceitou a mão que o ajudava. O cliente vestia um fato macaco e, na face encovada, ondeava a magia das sombras.

- Repare… - dizia-lhe o pintor, numa inflexão bem-humorada mas afetuosa -, repare nesse almofariz. E nas cascas dos ovos… É assim que se faz a mistura. Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.

O visitante permanecia silencioso. Esforçava-se por recuperar a sua personalidade de lojista para quem os caprichos dos clientes são sempre justificados. No entanto, a testa borrifara-se de suor. Limpou-a com o lenço, delicadamente, como se o gesto fosse dedicado a outra pessoa, e exclamou:

- Razão tinha V. Ex.ª. Dois ovos por dia, claro. Não precisava de mais. Desculpe ter duvidado. Confesso que ainda me sinto confuso. Vender ovos para alguém pintar! –

Apoiou-se no estrado, fitando o cliente com serena admiração: - Tenho a honra de estar falando com…

- Luís Dourdil, pintor.

- Agradecido a V. Ex.ª. O pior é que a minha mulher não vai acreditar.

Um conto de Fernando Namora sobre uma vivência de Luís Dourdil no âmbito da pintura mural do Café Império. Versão impressa na revista EVA, no número de Natal do ano de 1969, nas páginas 56,57,59 e 86.